A assessoria de comunicação do Senado Federal emitiu, dia destes, uma postagem – por conta do dia mundial de combate ao preconceito contra não heterossexuais – dizendo que uma das muitas formas de ser “homofóbico” é usar o termo GLS em vez de LGBTI+. ( 1 )
O Senado talvez esteja sendo “homofóbico”, pois segundo o site Põe na Roda, dedicado à comunidade GLS, há um movimento pregando o uso da sigla LGBTQQICAPF2K no lugar de LGBTI+ (e não é piada).
GLS foi, em priscas eras, uma sigla que fazia referência aos homens homossexuais, às mulheres homossexuais e aos simpatizantes (termo vago que podia ser lido como bissexual ou qualquer pessoa que apoiasse as causas GLS).
Algumas pessoas acharam que as letras eram pouco inclusivas: estava faltando mencionar o sofrimento dos trans (neste contexto o T abarcava tanto os transexuais, pessoas que possuem um transtorno psiquiátrico que as torna desconfortáveis com o próprio sexo quanto os travestis, pessoas que só gostam de se vestir como sexo oposto). E GLS virou LGBT.
Mas aí lembraram que os intersexuais: pessoas com qualquer tipo de disforia de gênero, exceto os transexuais supramencionados, também sofrem; e que, além deles, alguns outros não heterossexuais que não se lembravam bem quais eram, mas deviam existir, também sofriam. Então veio o LGBTI+.
Recentemente – segundo nos informa o já citado Põe na Roda (creio que seja um trocadilho) ativistas ingleses passaram a postular que a sigla mencione o sofrimento das lésbicas, dos gays, dos bissexuais, dos transgêneros, dos gays muito efeminados, dos que estão no armário, dos intersexuais, dos que não gostam de fazer sexo, dos que acham que não são homens nem mulheres, dos héteros que apoiam a causa GLS, dos que são héteros mas têm vontade de experimentar algo diferente, dos que topariam fazer sexo com pessoas de qualquer das categorias desta lista, dos que topariam fazer sexo com pessoas de quase qualquer das categorias desta lista, dos amigos e familiares dos membros de qualquer categoria desta lista, dos não heterossexuais que vivem de acordo com as crenças de algumas tribos indígenas e dos que gostam de fazer sexo com a ajuda de chicotinhos, vendas e cordas de marinheiro… ufa… cabou! Por enquanto!
Peterson, pós-modernismo e sofrimento humano (ou ‘opressão’).
Em uma de suas palestras (3) o professor Jordan Peterson usa o exemplo da extensão das iniciais GLS como símbolo de como o pensamento surgido entre pensadores alemães e franceses do pós-guerras (que chamamos genericamente de ‘pós-modernismo’) deturpa o problema do sofrimento humano o empacotando em categorias de gente.
Quem sofre mais e quem sofre menos ? Um jovem loiro de olhos azuis morador do Leblon que foi estuprado por um irmão mais velho várias vezes ao longo da infância e adolescência? Uma adolescente lésbica de ancestralidade japonesa que – quando tinha 11 anos – viu seus pais serem fuzilados por criminosos em uma tentativa de assalto? Uma mulata favelada que sempre foi amparada por pais e irmãos amorosos?
A pessoa que escreve este artigo é um mulato de pele bem escura de 39 anos, morador de uma favela carioca, que aos 9 anos de idade foi expulso de casa pelo pai e ouviu dele a maldição de que morreria antes do 18 porque ‘tinha nascido pra ser bandido, como o primo que morrera antes anos num assalto a ônibus’; aos 10 anos de idade catava lixo na rua para comer; aos 13 anos morava num barraco feito de restos de móvel velho, telhas de amianto quebradas e sacos de lixo cobrindo as telhas pra evitar as goteiras; passou toda a adolescência e boa parte da juventude vendendo balas nos ônibus e trens do Rio pra sustentar sozinho mãe e irmã… e nada disso representou os piores sofrimentos dela.
Os meus piores sofrimentos em vida até hoje estão associados com um transtorno psiquiátrico [fobia social] e com o fim do meu casamento alguns anos atrás: foi após o fim do meu casamento a única fase na vida em que me vi efetivamente deprimido, foi também a única vez que tive ideações suicidas, foi também o momento em que me vi diante de uma necessidade urgente reinventar toda minha vida, projetos pessoais, relação comigo mesmo virtualmente do zero. E obviamente ainda não consegui me por completo nos eixos, como me parece que nenhum de nós seres humanos jamais conseguiremos.
Obviamente que lido frequentemente com frustrações por sonhos que não deram certo ainda, e que possivelmente nunca darão; por erros que fui acumulando ao longo da vida e que se não tivesse os cometido poderia estar em melhor condição; por injustiças e preconceitos que sofri – sim, também.
Mas eu não sou nem L nem G nem B nem T nem I nem Q…, eventualmente posso ser S, mas muito eventualmente. Eu entendo que seres humanos sofrem: e sofrem em diversos níveis pelos mais diversos motivos.
Quantas pessoas que leem este texto já estiveram em condição de sofrimento maior que as minhas? Ou menor?
Impossível saber: impossível metrificar.
O fato de eu ter morado na rua, ou de ter vivido boa parte da minha em condições sub-humanas é claro que me trouxeram sofrimentos, sofrimentos estes que me deixam resquícios até os dias de hoje… sem sobra de dúvidas.
Mas estes sofrimentos simplesmente não podem ser medidos numa régua, para que se possa comparar com os sofrimentos que você – leitor – passa, passou ou passará na sua própria vida. Menos ainda se pretendermos usar uma régua magicamente defeituosa em que a distância entre os centímetros seja encurtada ou aumentada em função da minha pele cor de cacau em pó ou do fato de eu ser capaz de produzir espermatozoides ou de não ficar excitado ao ver fotos de homens nus.
O vídeo de Jordan é fantástico, um dos meus preferidos do professor canadense, e fala exatamente sobre como este empacotamento dos sofrimentos e gozos em categorias de gente (mulheres sofrem, homens se divertem; negros sofrem, brancos passam a vida felizes… ) mina a competência dos indivíduos desta nossa era tão influenciada pelos pós-estruturalistas de Paris e ‘críticos’ de Frankfurt em suportar e enfrentar suas próprias dificuldades pessoais, o sofrimento para Jordan (e para mim também) deve ser compreendido como algo da natureza humana, um pacote exclusivo e intransferível de dores que cada indivíduo sempre terá que carregar.
É nossa meta tentar aliviar o nosso e o dos outros na medida do possível: é nossa meta de sucesso em ter existido. Mas isso não pode ser feito de maneira adequada se coletivizamos o sofrimento e a felicidade. Se dizemos que pelo fato de eu ser mulato eu sofro inerentemente mais do que qualquer branco… ou se por ser hétero eu sofro inequivocamente menos que um travesti… O que fazer se eu sou mulato e hétero? Eu sofro mais ou sofro menos que um travesti loiro?
Pós-modernismo, olimpíadas da ‘opressão’ e fraudes estatísticas sobre minorias
Mas nesta digressão toda sobre o empacotamento das dores em categorias de gente, eu quero chamar atenção para uma faceta específica do pós-modernismo. Ela reside mais precisamente nas ideias de Habermas sobre como remediar as desigualdades promovidas pelas diferentes ‘estruturas de poder’.
Jürgen Habermas: o único dos ‘grandes’ pensadores de Frankfurt ainda vivo é o principal nome a influenciar os poderes legislativo e judiciário do Ocidente à ideia de que pessoas devem ser dignas de tratamento desigual por parte do Estado desde que seja para aliviar o sofrimento dos membros dos pacotes de gente eleitos para sofrer. (4) (5)
O princípio de tratamento igualitário independente de raça, sexualidade, credo, sexo, time de futebol pelo que se torce ou coisas parecidas – uma joia do pensamento liberal – foi subvertido pela influência pós-marxista nos últimos 50 anos.
O mundo se convenceu de que se for para amenizar o ‘sofrimento dos negros’ é permitido promover tratamento legal diferenciado com base em raça; se for para aliviar o ‘sofrimento das mulheres’ justifica-se a adoção de muitas leis fazendo distinção de tratamento legal com base em sexo; se for para aliviar o sofrimento de qualquer um dos membros das referidas sopas de letrinhas do começo deste texto, então podemos pensar em criar leis que beneficiem especialmente categorias especiais de gente.
A extrema-direita: bloco político ao qual tenho aderido nos últimos 10 anos, depois de ter passado boa parte da minha vida encantado pela extrema-esquerda, defende que não há categorias especiais de gente exceto o indivíduo. Se pensamos apenas no indivíduo não temos tempo de pensar sobre que tipo de vida vale mais: a de Marcos Kitano ou de Eliza Samudio. Entenderíamos que as mortes de ambos foram muito semelhantes em motivações e circunstâncias, e que Elise Matsunaga e o goleiro Bruno não são criminosos que mereçam tratamentos diferentes.
O desejo e a possibilidade de ser tratado de modo especial e preferencial pelo Estado e pela sociedade em função da categoria de gente a que você pertence é – ao meu ver – um dos principais motores das ideologias e políticas identitárias do fim de século XX que explodiram loucamente neste começo de século XXI.
É também o catalizador da busca desenfreada que observamos entre os adeptos destas ideologias por mostrar que a sua categoria de gente sofre mais do que as demais categorias. Em última análise é isto que explica pesquisas e leituras fraudulentas de dados estatísticos como aquelas promovidas pela UFRJ na pesquisa LESBOCÍDIO e pelo GRUPO GAY DA BAHIA no seu relatório anual de ‘crimes lesbofóbicos’.
Com efeito estas duas instituições pedem exatamente isso: ambas (tanto UFRJ quanto GGB) pleiteiam que – com base nos estudos fraudulentos que divulgam – se aprovem leis desiguais, que criminalizem de forma mais pesadas crimes cometidos contra membros da comunidade GLS.
Outros movimentos identitários fazem o mesmo – eventualmente com sucesso, sobretudo o feminista.
Exatamente por isso ampliar as categorias dos que sofrem parece tão urgente. Por isso a cada sigla GLS nova sempre alguém lembra de levantar o dedo e gritar “ei, me põe aí: eu sou oprimido também”.
Por isso a pesquisadora da UFRJ Maria Clara Marques Dias resolveu criar uma pesquisa (fraudulenta) sobre assassinatos motivados por preconceito contra homossexuais do sexo feminino, quando já existia uma pesquisa (igualmente fraudulenta) sobre assassinatos motivados por preconceito contra homossexuais em geral.
Neste sistema de pensamento precisamos convencer o tempo todo de que pertencemos a grupos de oprimidos, não de opressores. Mais do que isso: precisamos mostrar que é o nosso grupo o mais oprimido de todos, todas e todes os grupos, grupas e grupes.
Pode ser uma leitura simplista: uma conclusão apressada. Mas ao meu ver o eixo central de toda a ‘problemática’ envolvendo fraudes em estatísticas de minorias, explosão da violência praticada grupos identitários no começo do século XXI, olimpíadas da ‘opressão’ reside na expectativa (criada pelos discursos de diversos pensadores pós-marxistas, especialmente por Habermas) de ser tratado preferencialmente pelo estado com base na categoria de ser humano a que você pertence.
Voltemos a olhar pro indivíduo como indivíduo: voltemos a nos esforçar para ignorar a sua raça ou sexo ou sexualidade ou time de futebol quando os julgamos, quando lhe oferecemos direitos ou exigimos dele o cumprimento de deveres.
É isto que extremistas de direita, como Jordan Peterson e eu, defendemos.
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